Relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) aponta que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) usou uma regra de 2018, que autoriza os policiais a trabalharem além da escala em situações de urgência, para pagar “horas extras” a agentes que não trabalharam de fato – e que, inclusive, estavam de licença médica ou em férias.
O documento recomenda que a PRF adote providências para que sejam devolvidos, pelo menos, R$ 3 milhões pagos indevidamente aos policiais. A CGU também orienta a PRF a:
- não pagar indenizações desse tipo em situações que não exijam mobilização significativa da corporação;
- revisar as regras para pagamento;
- apurar a responsabilidade pelos pagamentos indevidos.
A auditoria aponta problemas no pagamento e no controle interno da PRF sobre essas indenizações. Segundo o relatório, entre setembro de 2019 e outubro de 2021, a Polícia Rodoviária Federal gastou pelo menos R$ 153 milhões com o recurso.
A indenização por flexibilização voluntária do repouso remunerado (IFR) foi criada por medida provisória em maio de 2018, como reflexo da greve dos caminhoneiros ocorrida naquele ano.
O objetivo era permitir que os policiais rodoviários federais se dispusessem a trabalhar voluntariamente durante parte do descanso remunerado de sua escala. Nesse trabalho extra, poderiam atender demandas emergenciais e reforçar o policiamento ostensivo nas estradas, inclusive em ações de feriados e do fim de ano.
Conforme o relatório, o recurso previsto para a indenização cresceu ano após ano, passando de R$ 10 milhões em 2018 – que sequer chegaram a ser executados – para R$ 70 milhões no orçamento deste ano.
Segundo o órgão de controle, a PRF não apresentou justificativas claras para este crescimento nem mostrou o impacto de concursos realizados neste período, que expandiram o efetivo do órgão. Além disso, foram feitos pagamentos fora do previsto originalmente, inclusive para policiais que sequer estavam trabalhando.
Os auditores identificaram o pagamento, nos dois anos analisados, de pelo menos 4.307 indenizações para servidores que estavam em período de licença médica ou carência (logo após o fim de uma licença médica), num valor total de R$ 2,92 milhões.
Para a CGU, a constatação foi de uma situação grave, “uma vez que houve realização de IFR dentro do período da licença médica, ou seja, os servidores estavam afastados por prescrições médicas […] e receberam indenização de remuneração no período, sem a prestação de qualquer serviço.”
O relatório também aponta a ocorrência de casos, ainda que poucos, de servidores que receberam a indenização enquanto estavam de férias.
Outro problema encontrado na auditoria envolveu o acúmulo da indenização com parte das diárias pagas aos servidores. Pela lei que criou a IFR, os policiais não poderiam receber indenização e diárias de forma cumulativa, mas na prática a PRF autorizou que os policiais devolvessem as diárias apenas de maneira proporcional.
Para a CGU, “há risco significativo de prejuízo ao erário decorrente de pagamento indevido, em vista da devolução proporcional de diárias quando da execução de IFR, em conflito com o texto legal que criou a citada indenização.”
Em nota (íntegra abaixo), a PRF afirmou que o pagamento da indenização “mostrou-se, no decorrer do tempo, um importante instrumento para a segurança pública nacional, na medida em que possibilitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à própria Polícia Rodoviária Federal a potencialização do emprego do seu efetivo policial”.
A corporação também diz que, após o relatório da CGU, editou uma portaria para regulamentar o pagamento da indenização. Na nota, a PRF não diz quais medidas pretende tomar para garantir a devolução dos pagamentos indevidos e a responsabilização dos envolvidos.
Conflito de interesses
Os auditores identificaram que parte do problema vinha da própria regulamentação da indenização, feita pelo Ministério da Justiça ainda em 2018. À época, o órgão “não deixou evidentes as condições e os critérios necessários ao recebimento da IFR”.
Por conta disso, afirma a CGU, o detalhamento das regras acabou sendo feito pela própria PRF, em descumprimento ao previsto na lei e gerando um possível conflito de interesses, “na medida em que a IFR está sendo utilizada de forma rotineira e mais abrangente do que o permitido pela Lei.”
A polícia rodoviária não ouviu, por exemplo, as consultorias jurídicas do ministério – o que é obrigatório por lei.
No processo de detalhamento das regras, mostra o relatório, a PRF definiu por exemplo que a indenização poderia ser paga não somente para ações de campo, mas também para ações de corregedoria e inteligência.
Os auditores também identificaram que a PRF não esclarece adequadamente a diferença entre uma operação ordinária e uma operação que permita, nos termos da lei, o pagamento da indenização.
Assim, “ao permitir o pagamento da IFR a servidores que não atuam em condições de ‘eventuais ações relevantes, complexas ou emergenciais que exijam significativa mobilização da Polícia Rodoviária Federal’, o gestor se desvia da finalidade da indenização e compromete a capacidade de mobilização”, aponta o documento.
O órgão de controle também apontou outras questões relativas às indenizações, como ausência de folgas adequadas para os policiais que recebiam a indenização após as operações e falta de transparência na seleção dos policiais beneficiados.
Para a CGU, a PRF possui baixa eficácia em reduzir os riscos relacionados à indenização, sendo incapaz, por exemplo, de informar sequer em quantas operações utilizou a IRF no período analisado.
Os auditores afirmam que é “fundamental e urgente” que o ministério da Justiça revise as condições e critérios para o pagamento da indenização.
“Na prática, ao permitir o pagamento indiscriminado da IFR a servidores que não atuam em condições de ‘eventuais ações relevantes, complexas ou emergenciais que exijam significativa mobilização da Polícia Rodoviária Federal’, o gestor desvia a finalidade da utilização da indenização e, compromete a capacidade de mobilização ao qual o mesmo se propôs, podendo ser percebido mais como um incentivo salarial que retribua o desempenho do servidor em atividades rotineiras à instituição, ao invés de cumprir o papel de mobilizar e preparar a PRF à capacidade de resposta em situações graves e urgentes, que exijam pronta atuação”, conclui o relatório.
Íntegra
Leia abaixo a íntegra da nota enviada pela PRF sobre o caso:
Inicialmente, cumpre-nos pontuar que a Indenização pela Flexibilização Voluntária do Repouso Remunerado – IFR – foi instituída no mês de maio de 2018.
Muito embora tenha sido motivada pela complexidade e magnitude das ações a serem empreendidas naquele momento de crise, a IFR mostrou-se, no decorrer do tempo, um importante instrumento para a segurança pública nacional, na medida em que possibilitou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública e à própria Polícia Rodoviária Federal a potencialização do emprego do seu efetivo policial.
Fato é que, o modelo usualmente utilizado de emprego do efetivo encontrava-se em vias de esgotamento, sendo urgente a adoção de medidas específicas e extraordinárias de modo a combater a crescente violência nas rodovias e estradas federais, bem como nas demais áreas de interesse da União. Neste norte, a IFR possibilitou a utilização de parte do repouso remunerado do efetivo local – ampliando a quantidade de policiais disponíveis para operacionalização das ações de segurança viária, de enfrentamento à criminalidade, de proteção ao patrimônio e de preservação da vida.
Quanto à auditoria da CGU, destacamos que se tratou de uma oportunidade para que a PRF pudesse aprimorar seus processos de seleção, convocação e pleno emprego do efetivo policial disponível, especialmente daqueles servidores que renunciavam seus períodos de repouso para continuar a contribuir com a sociedade, o que culminou com a publicação da Portaria MJSP nº 157, de 4 de outubro de 2022, que regulamenta o pagamento da Indenização pela Flexibilização do Repouso Remunerado ao integrante da Carreira de Policial Rodoviário Federal.