Além de proporcionarem uma cultura mais sustentável e saudável, os parreirais de uva orgânica vêm ganhando espaço e proporcionando uma maior diversificação de produtos na Serra gaúcha. O fruto colhido livre de agrotóxicos, que normalmente é usado para consumo in natura ou para a produção de vinhos, espumantes e sucos, vem ultrapassando fronteiras, ampliando a variedade e se transformando em farinhas, óleos e até mesmo calçados.
Da fruta, o suco. Da casca, farinha. Das sementes, farinha e óleo. Em Garibaldi, na empresa Organovita, desde 2015 nada mais vai para o lixo. Os produtos orgânicos fazem parte da vida da família Postingher desde 1996, quando dedicavam-se exclusivamente à produção de sucos de uva orgânico integral, com a marca Uva’Só, feito de uvas da variedade Bordô.
A Organovita nasce só em 2019, apesar da produção das farinhas e óleos já estarem a todo vapor. No estabelecimento, na Linha São Luis do Araripe, no interior garibaldense, não são apenas as frutas que são integralmente aproveitadas. A água da chuva é usada nos sanitários. A loja e os galpões de produção são de materiais também reaproveitados, enquanto a primeira é de pipas de vinho, a alvenaria onde ocorre tanto o envase do suco quanto a secagem da casca e da semente é de demolição. Inclusive janelas e portas.
— Surgiu porque nós tínhamos muita abundância de matéria-prima aqui dentro da nossa empresa e a gente viu que já existe tanta comprovação do quanto a uva faz bem para a saúde e a gente está jogando fora isso. A gente desenvolveu todos os maquinários, porque, como são produtos que não existem, não tinha máquina para fazer. Então, tudo a gente desenvolveu, testou, aprimorou e levou muitos anos até a gente chegar nos equipamentos que temos hoje — explica a nutróloga da empresa, Bruna Postingher Accadrolli.
A matéria-prima dos produtos não é própria da família. Eles trabalham em parceria com agricultores familiares da Serra, com uma média de 300 mil quilos de uva ao ano – e 200 mil quilos de maçã no mesmo período, fruta também utilizada para sucos e farinha. O óleo de semente de uva é usado tanto para alimento quanto para cosméticos – para a estética, tem estudos que apontam melhora na aparência de rugas, na elasticidade da pele e na hidratação.
A farinha da semente de uva, inclusive, foi até utilizada em uma linha de calçados das Lojas Renner, no ano passado. O produto, de acordo com Bruna, é usado no corino dos sapatos. De acordo com a Renner, foram quatro modelos de calçados femininos – duas botas, um sapato e um tênis -, lançados em junho de 2022. A matéria-prima foram resíduos de uva não aproveitados pela indústria do suco ou do vinho. Esta linha não é mais comercializada.
— No dia em que a fruta é prensada, a gente faz a secagem e depois a gente armazena nuns bags, que a gente chama, que é umas embalagens bem grandes, bem fechadas e ali se conserva mais de um ano essa matéria-prima. Conforme nossos pedidos e histórico, a gente vai fazendo a prensagem da semente para extrair o óleo e a moagem da semente sem óleo e da casca para fazer a farinha — diz Bruna.
“Nada se ganha, nada se perde, tudo se transforma”
A frase de Lavoisier é levada muito a sério também pela família Mariani, em Garibaldi. A história com as uvas para o enólogo Jorge atravessa gerações. Começa em 1884, quando o “bisnonno” dele chega ao Brasil, vindo da Itália. Assim como ele e centenas de famílias que chegaram nesta época, o cultivo da uva virou um sustento. Que passou para o “nonno” de Jorge e para o pai. Esse, com a inovação no setor agrícola, foi o único a usar agrotóxico nos vinhedos.
— Lá no início, o bisnonno e o nonno não usavam veneno, não conheciam, mas a geração do meu pai, ali na década de 70 em diante, sim. Eles (vendedores) vinham em casa, dizer que era remédio, que aquilo lá fazia milagres, e meu pai aprendeu a lidar com aquele negócio (agrotóxico), tanto que foi uma das consequências da morte (do pai de Jorge) — opina o enólogo.
Visionário no cultivo, as opiniões de Jorge e do pai acabavam divergindo. Por isso, o enólogo precisou se afastar da propriedade. Foi no final da década de 1990, com a morte do pai, num domingo pela manhã, no Campo & Lavoura, que o enólogo conheceu o cultivo orgânico. Com outros interessados nesta produção, foi fundada a Cooperativa dos Produtores Ecologistas de Garibaldi. Nascia também a Orgânicos Mariani, que, assim como a Organovita, faz parte da Via Orgânica no município, um roteiro de turismo rural do Brasil por propriedades orgânicas certificadas. No local, além de belas paisagens, há um resgate de antigas formas de cultivo aprimoradas pelas novas tecnologias, contato direto com a simplicidade e a experiência de quem produz e prepara o alimento.
— Minha esposa foi quem me incentivou a conhecer melhor, porque eu não acreditei muito naquele negócio. À época, estava surgindo um programa de novas alternativas de produção da prefeitura e isso me incentivou —comenta Jorge Mariani.
Atualmente, a família produz 80 mil quilos de uva por ano. A safra é utilizada para fabricar sucos e vinhos, pela própria família. O porão da casa centenária, que antes servia como vinícola, hoje é usado para degustação e comercialização dos produtos orgânicos fabricados pela empresária Salete Mariani, esposa de Jorge.
— Não é só nós que ganhamos, é o ambiente quem ganha, as pessoas que ganham. Tem convites de exportação, mas a gente entendeu que ainda tem muito espaço aqui para alimentar o nosso povo, trabalhamos forte com políticas públicas de merenda escolar — defende o enólogo.
Quem consegue quantificar seu universo são cooperativas de vitivinicultores. É o caso da Cooperativa Vinícola Garibaldi, que hoje trabalha com 420 mil quilos de uva orgânica para suco e 16 mil quilos para a fabricação de espumante biodinâmico, o qual vai além do orgânico e exige do produtor um entendimento dos ciclos naturais e até mesmo da astronomia.
— Numa maneira geral, nos últimos anos está se comportado muito bem, o clima tem permitido. Claro que são algumas variedades que permitem esse cultivo orgânico, e que tem todo esse apelo de sustentabilidade no campo. Eu vejo com bons olhos a iniciativa de produção orgânica, sempre é um cultivo que tu tem que valorizar o manejo do vinhedo, o trabalho do viticultor, porque já em condições normais é difícil produzir. Em condições de menos intervenção de agrotóxicos, sem nenhuma ferramenta que possa proteger de uma condição adversa, é mais difícil ainda — analisa o enólogo da Garibaldi e presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), Ricardo Morari.
Morari também aposta que o cultivo orgânico na cooperativa tem incentivado produtores que fazem manejo convencional com agrotóxicos a migrarem para uma produção livre ou com redução do produto. Na região, as variedades mais cultivadas são Bordô, Chardonnay e Pinot Noir.
Segundo o vice-presidente da Cooperativa Nova Aliança, de Flores da Cunha, Joel Panizzon, a safra de 2023 prevê um total de 1 milhão de quilos.
— Conforme a demanda por produtos orgânicos for aumentando, vamos procurar em parceria com os associados que já produzem uvas orgânicas e os que tiverem interesse em converter seus vinhedos para produção orgânica, aumentar a área de vinhedos para suprir essa demanda — destaca Panizzon.
Em Caxias, quem é da cidade encontra uvas orgânicas em fruteiras. Como a Horta da Nonna, no bairro Pio X, que desde 2008 comercializa a fruta. Uma das sócias-proprietárias, Camila Erlo conta que a época da uva ir para as estantes é a mais aguardada pelos clientes, entretanto, a comercialização tem diminuído em comparação com o período pré-pandemia.
— O mercado de orgânicos, antes da pandemia, estava bombando. Com a pandemia, teve muita gente que recuou, porque tem muita gente que precisou controlar gastos. Mas já cheguei a vender 200 quilos de uva por semana — fala Camila.
A relação com os orgânicos já vem da família. Há 30 anos, a família iniciou a produção de morangos, segundo ela, os primeiros livres de agrotóxicos no município de Feliz. A opção de orgânicos se deu por uma questão de saúde, tanto para os produtores quanto também para os consumidores. Hoje, a Horta da Nonna também conta com três produtores e fornecedores certificados de Caxias, Veranópolis e Nova Roma do Sul.
Dos parreirais para a vinícola
O ano de 2009 foi o pontapé inicial para a produtora Ivete Dalpupo começar a cultivar parreiras de uva orgânica. Os primeiros frutos começaram em 2012 e, desde o início da ideia, a produtora associou-se à Cooperativa Garibaldi, o que ajudou com dúvidas técnicas.
— A gente nunca tinha tido parreiras, iniciamos já com orgânicos. Uma porque temos uma área pequena e outra porque orgânico é outra coisa. A gente se associou na cooperativa e os técnicos começaram a incentivar a gente. Além de ganharmos um pouquinho mais, é pela saúde da gente — afirma Ivete.
Quem mais comanda os vinhedos é Ivete, que tem ajuda do marido e do filho nas horas livres deles. Outra ajudinha é de dois gansos e de perus, criados nos parreirais para comer insetos que surjam na plantação. Hoje, as variedades cultivadas são Bordô e Concord e a expectativa para essa safra é que ultrapasse os 10 mil quilos de fruta.
Mais de 20 anos de uva orgânica que também viram geleias
Com a produção de 60 variedades, entre hortaliças e frutas, as uvas da HF Carraro começaram a ser produzidas, de acordo com o sócio-proprietário, Marcelo Carraro, em 2000, um ano antes da construção da agroindústria. Da variedade Bordô, saem também geleias com e sem açúcar, chimias e sucos integrais.
— Comercializamos para vários estados, hoje atendemos 19 estados, alguns com representação e outras através de venda online. Temos uma matriz aqui (em Monte Alegre dos Campos), uma filial em Vacaria — afirma Carraro.
A produção média da HF Carraro varia de 25 a 40 mil quilos, conforme a safra. Além da comercialização dos produtos, a propriedade, localizada na Capela Santo Antônio, no 2 também realiza turismo rural, dispõe de áreas de acampamento e está construindo um ecohostel.
Pisa de uva orgânica? Tem!
Há 13 anos, o produtor Ruben Enderle teve a ideia de plantar um parreiral de uva de mesa, nascendo assim a Casa Adesso, no distrito de Faria Lemos, em Bento Gonçalves. Quando o plano foi compartilhado, veio a sugestão da Emater e de outros produtores de que o cultivo fosse orgânico em parte. A ideia foi aceita, e o que era para ser um pouco virou totalmente orgânico.
— Hoje temos Itália, Rubi, Niágara. Isso foi pela nossa saúde, vendo o espaço para produtos mais saudáveis no mercado, aos poucos fomos aumentando a área de cultivo — compartilha Enderle.
Hoje, na propriedade que produz pelo menos, 12 mil quilos de uva, é possível aproveitar o que o rural oferece com gastronomia típica italiana, caminhadas ao ar livre e um dos programas favoritos de turistas na região: a tradição pisa. Só que desta vez, de uva orgânica. Também é possível comprar uvas colhidas na hora, no parreiral que fica ao lado da loja nas margens da RS-431.